Crustáceo descoberto em cavernas do RN guarda traços de um passado marinho
18/10/2025
(Foto: Reprodução) Brasilana spelaea é a primeira espécie troglóbia descoberta no RN
Diego M Bento / ICMBio-Cecav
Um pequeno crustáceo branco e cego, com antenas alongadas e corpo achatado, acaba de se tornar o mais novo representante da fauna subterrânea brasileira. Trata-se da Brasilana spelaea, a primeira espécie troglóbia descrita no Rio Grande do Norte, encontrada em cavernas inundadas da região oeste do estado.
O estudo, publicado recentemente na revista científica Subterranean Biology, aponta que o animal pode já estar ameaçado de extinção devido às pressões humanas sobre os aquíferos e cavernas onde vive.
Mas por que troglóbia? Uma espécie troglóbia é um ser vivo adaptado exclusivamente à vida em ambientes subterrâneos, como cavernas, aquíferos ou fendas rochosas, e que não consegue sobreviver fora deles. O termo vem do grego: troglo (caverna) + bios (vida), ou seja, “vida da caverna”.
Parque da Furna Feia é um dos locais de ocorrência do crustáceo
Carmém Felix/governo do RN
Segundo o pesquisador Diego Bento, analista ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), que assina a descrição da espécie, a descoberta amplia o conhecimento sobre a biodiversidade subterrânea brasileira e revela um cenário de vulnerabilidade ambiental. O crustáceo vive em cavernas de águas subterrâneas estáveis, ambientes sensíveis a variações climáticas e à exploração de recursos naturais.
“Como todos os isópodes, existem machos e fêmeas e a reprodução é sexuada. A fêmea guarda e incuba os ovos”, explica Luiz Ricardo. Sendo relativamente grande para um invertebrado troglóbio, o corpo da nova espécie mede cerca de 1,2 a 1,5 cm de comprimento, podendo chegar a quase 2 cm nos maiores exemplares.
“Sabemos que é uma espécie troglóbia, que passa o tempo todo em cavernas e outros habitats subterrâneos. Ou seja, os indivíduos nascem, alimentam-se, crescem, reproduzem e morrem nesses ambientes, e não conseguem sobreviver na superfície”, acrescenta.
Um relicto oceânico
Além de sua raridade, a Brasilana spelaea chama atenção por sua origem evolutiva. Ela pertence à família Cirolanidae, composta majoritariamente por espécies marinhas.
“A espécie é muito importante para o entendimento da evolução dos troglóbios, principalmente porque é um relicto oceânico”, diz o pesquisador. “Seus ancestrais viviam no mar e, após uma transgressão oceânica, colonizaram espaços subterrâneos. Quando o mar recuou, ficaram presos nesses ambientes e continuaram a viver ali, adaptando-se às condições subterrâneas”
Esses registros ajudam a reconstruir a história geológica da região. O Rio Grande do Norte é o único lugar do Brasil onde são conhecidos relictos oceânicos - espécies que mantêm vestígios dessa transição do mar para o subsolo.
Adaptações à escuridão
O pequeno crustáceo apresenta um conjunto de características típicas de animais que vivem em ambientes sem luz: ausência de pigmentação e de olhos, antenas longas e órgãos sensoriais aguçados. “Resumindo, provavelmente vai ser um bicho branco (ou transparente), cego e antenudo. E é exatamente assim com Brasilana spelaea”, diz o pesquisador
Espécie já pode estar correndo risco de extinção, segundo os autores do artigo
Rodrigo Lopes Ferreira /UFLA
Além das modificações físicas, os troglóbios também possuem um metabolismo lento, o que lhes permite sobreviver com poucos recursos alimentares. “Eles conseguem se alimentar de uma variedade maior de coisas e sobreviver com menos recursos, pois o metabolismo é mais lento. Isso quer dizer também que vivem por muito mais tempo”, explica.
Função ecológica e ameaças
Nas cavernas onde ocorre, o crustáceo tem papel importante como espécie detritívora generalista, ajudando a decompor matéria orgânica por se aliemntar de fezes de morcegos, biofilmes bacterianos e restos vegetais e animais. Também serve de alimento para alguns peixes.
Mas sua sobrevivência já está em risco. Segundo Diego, as cavernas que abrigam suas populações vêm sendo impactadas por mineração artesanal, desmatamento, turismo desordenado e superexploração da água subterrânea. Fatores que reduzem o lençol freático e, consequentemente, deterioram seu habitat.
Os planos de manejo são instrumentos que orientam o uso sustentável de áreas protegidas, como unidades de conservação. Na região onde Brasilana spelaea ocorre, há apenas uma: o Parque Nacional da Furna Feia, que já possui plano de manejo. No entanto, a maioria das cavernas conhecidas fica fora de unidades de conservação e acabam ficando vulneráveis à degradação.
Algumas cavernas com uso turístico organizado também contam com um documento específico - o Plano de Manejo Espeleológico -, que considera a presença de espécies sensíveis. Nessas áreas, portanto, a espécie está protegida.
“Com a descrição da espécie e a sua divulgação, ela poderá ter o seu risco de extinção oficialmente avaliado. Se confirmado que está ameaçada, pode ser inserida na lista nacional da fauna ameaçada de extinção e em iniciativas de conservação como os Planos de Ação Nacionais (PAN)”, orienta.
Distribuição restrita
De acordo com o autor do estudo, a Brasilana spelaea foi registrada em nove cavernas, numa área de cerca de 1.400 km² no oeste do Rio Grande do Norte, que inclui os municípios de Felipe Guerra, Governador Dix-Sept Rosado e Baraúna; e no nordeste do Ceará, em Quixeré.
Estudos genéticos sugerem que há fluxo gênico entre populações distantes, indicando que a espécie pode se dispersar pelo lençol freático e, talvez, ocorra em outras cavernas ainda não exploradas.
Apesar dessa relativa amplitude, o número de ambientes adequados é pequeno: “Poucas são as cavernas que possuem corpos d’água perenes na região, então a grande maioria não tem habitats adequados para a espécie”, alerta Luiz Ricardo.
Com a descoberta, o Brasil soma mais um exemplo da biodiversidade oculta de seus ambientes subterrâneos. Este e outros achados reforçam a urgência de proteger ecossistemas invisíveis, mas fundamentais, que abrigam espécies únicas e indispensáveis para o equilíbrio natural.
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